Tensionamento e o desejo de LEVeza: algumas memórias sobre MV

matraga biografias February 8, 2018

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Tensionamento e o desejo de LEVeza: algumas memórias sobre MV
Em meados 1993, falei pela primeira vez com um professor chamado Marcus Vinicius
de Oliveira Silva, anos depois, meu colega e amigo MV. Eu uma estudante tímida,
apavorada e desencontrada com a ausência do “social” nas discussões sobre um fazer
clínico. Conhecia a fama de durão desse professor e o admirava pelo discurso cortante,
direto e mobilizador sobre a loucura. Tentei ser oficialmente sua aluna na disciplina
Metodologia Científica, mas não foi possível. Época em que o curso de Psicologia era
menos pardo, muito menos negro, predominavam estudantes de classe social mais
abastarda, um tempo sem cotas raciais e com pouquíssimas pessoas oriundas do ensino
público. Um tempo demasiado branco. Sua presença me inquietava de longe.
Um dia fui até sua sala e pedi que ele lesse um texto que eu escrevi sobre um estágio
que fazia, multiprofissional (engenheiros, arquitetos, sociólogas, sanitaristas, estudantes
de ciências sociais e psicologia, mas sem psicólogas nem professora de Psicologia):
Ações Integradas de Saneamento da Baixa de Camurujipe. Na época, havia mais uma
imposição para a estudante definir uma abordagem clínica da psicologia. Fiz uma
escolha, acreditando que só assim seria uma compreensão psicológica, embora com
algum toque da psicologia social. MV pegou o texto, perguntou o contexto do estágio, e
disse: “volte em dois dias”. Voltei e ouvi: “esqueça isso Molije, isso não tem liga. Você
já ouviu falar de Silvia Lane, Martín-Baró…?”. E me apresentou o Homem em
Movimento, um clássico da psicologia social brasileira, que eu, pasmem, desconhecia.
Apenas quase dez anos depois, em meados de 2003, voltei a falar com Marcus Vinicius,
quando lhe pedi uma entrevista para o projeto de doutorado, o acesso a sua dissertação
de mestrado e sua experiência com o tema da atuação de psicólogas na saúde coletiva.
Seu conhecimento crítico sobre a reforma psiquiátrica na Bahia me fez compreender
que o pensamento de MV era imprescindível para realizar qualquer estudo sobre este
tema. Nos meus reconhecimentos a pessoas importantes, na tese, escrevi: “Ao professor
Marcus Vinícius, que não faz ideia de quanto me impulsionou nesta jornada”. Suas
palavras, suas criticas, suas alfinetadas, suas memórias e participação sobre a psicologia
no contexto baiano e brasileiro foram fundamentais para o desenvolvimento daquele
estudo, que orienta até hoje meu trabalho acadêmico e militante. Tudo isso produziu em
mim um tensionamento que entendi muito tempo depois, era seu método de trabalho.
Creio que ele nunca soube deste reconhecimento formal. A Bahia deve muito a Marcus
Vinicius e a sua parceira de luta Edinha Amado. Em sua total dedicação à luta
antimanicomial, enfrentaram sempre os conservadores manicomiais, que ainda insistem
em lucrar com a loucura. MV não quis simplesmente passar e não fazia nada além do
que já tivesse se autoexigido, não pedia nada que não pudesse dar de volta ou que ele
mesmo não fosse capaz de suportar.
Em 2005, recebi um telefonema de Marcos Ferreira, amigo e companheiro de luta por
uma psicologia comprometida com o social, por lembrança do Marcus Vinicius, me
convidando para participar da Associação Brasileira de Ensino de Psicologia (ABEP).
Um mestre me apresentando a outro, ganhei um coletivo. Mais do que isso, amigas e
companheiras incansáveis me foram apresentadas por Marcus Vinicius, ao longo dos
anos, como Ana Bock. Do encontro direto com este trio e demais companheiras emergiu
uma nova psicologia para mim.

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Com a intensa e extensa agenda de MV, só o via em situações de congressos, não tinha
oportunidade de conversar diretamente com ele. Em 2007, ingressei na Universidade
Federal da Bahia, tornando-me sua colega. Como ele não fez parte da banca
examinadora, não tivemos contato diretamente, pois o concurso foi em 2006. Ele me
ofereceu abrigo institucional no seu grupo de extensão e pesquisa. Para MV, a extensão
alimentava a pesquisa; por isso, era totalmente indisciplinado com a escrita de artigos e
livros, e escreveu muito menos do que produziu. Organizou tudo que fazia e batizou de
LEV- Laboratório de Estudos Vinculares em Saúde Mental. Interessante este
significante, LEV, porque tudo que não era, era leve a vivência de MV no já quase
Instituto de Psicologia (IPS/UFBA). Foi duro descobrir isso, sendo sua colega.
MV também indicou meu nome para o componente curricular Psicologia e Saúde, que
era um ponto de virada para as estudantes quando ele era o professor. Poderia então,
como o projeto de formação que desejava, se concentrar exclusivamente no campo da
saúde mental, propriamente dita. E, claro, me disse rindo com um ar crítico: “Molije,
você é mais sanitarista do que eu”. Reconheci sua generosidade institucional, ainda que
fortemente tensionada pela oportunidade e responsabilidade que essa divisão de trabalho
proposta exigia. Não era um presente, era uma aposta político-pedagógica. Era assim
que eu via MV funcionando. Sua premissa: o tensionamento é o motivador da ação
social, política e pedagógica. Ele tinha muita habilidade para provocar essa tensão, tensa
para dentro e tensa para fora – como ele mesmo descrevia – com quem trabalhava, com
quem orientava, quando ensinava, quando discursava, principalmente com quem
supervisionava. O Programa de Intensificação do Cuidado (PIC), que depois
desembocou no Programa de Atenção Domiciliar à Crise (PADAC), tecnologia de
formação de psicólogas que ele criou, era o mais puro tensionamento. Com o objetivo
de tornar as pessoas agentes de mudanças subjetivas que operam nas condições
objetivas da vida. Método de ensino reconhecido como um dos melhores e mais
inovadores pelo Ministério da Saúde. MV, como mestre, era sempre um estudante
atento aos ensinamentos que só os loucos lhe poderiam oferecer. Tenho denominado
esta arte-técnica de “pedagogia do tensionamento”. Tudo que aprendeu com os loucos,
oferecia generosamente às estudantes através do mesmo investimento humano que
proponha com a intensificação do cuidado. MV levava a sério que todo discurso é ação,
toda ação é política. Por isso, não era leve para ele trabalhar no IPS/UFBA, porque ele
era a ponta do elástico esticado do tensionamento, e divergia de um grupo significativo
dentro da instituição. Tinha bons colegas, admirava alguns, mas não era querido e
admirado por outros, nem queria ser. Embora respeitando as diferenças, mostrava-se
implacável na defesa dos princípios republicanos.

MV queria ver implementado um projeto coletivo no curso de Psicologia, baseado no
compromisso social. Mesmo em situações nas quais o coletivo se instalava, estava longe
de atingir a radicalidade que ele reivindicava. Nesse particular, era pesado para o MV
estar ali. O que segurou tanto tempo MV na universidade foram as estudantes. Ele havia
recentemente voltado do pós-doutorado, quando ficou absolutamente convencido de que
deveria se aposentar, embora, estivesse ainda mais afiado com a questão dos efeitos da
desigualdade social nos processos subjetivos, em seu contato com Jessé de Souza. Foi o
primeiro professor do curso de Psicologia a enfrentar a questão racial e o sofrimento
psicossocial, além de ter introduzido vários outros temas contemporâneos,
negligenciados e urgentes. Ele era uma máquina criativa; por isso, era muito difícil, às
vezes, acompanhar seu ritmo e disposição para a luta.

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No meio das mangueiras e palmeiras imperiais de São Lázaro, o mais belo dos belos
campi da UFBA, me disse: “Molico, entrei com o pedido de aposentadoria”. Havia mais
do que alegria, havia alívio, autoliberação da tarefa sisífica que exercia. E assim o fez,
saiu da UFBA com a consciência tranquila de quem se havia dedicado, reafirmando o
radicalismo dos seus princípios, lamentando apenas não ter conseguido desenvolver o
projeto radicalmente coletivo desejado. Ele, o cara da ação coletiva, referência na luta
antimanicomial e dos direitos humanos, um dos fundadores do Movimento Cuidar da
Profissão, do Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas, do
Instituído Silvia Lane, um dos atores que modificou para sempre a Psicologia Brasileira,
capaz de identificar e juntar pessoas de vários lugares, alimentando um projeto
coletivo…

Logo depois da sua saída, o IPS/UFBA fez uma homenagem aos recém-aposentados, e
o nosso primeiro diretor, professor Antônio Marcos Chaves, me deu a honra de entregar
a MV a placa de reconhecimento. Eu tinha apenas alguns anos na instituição e não
conseguia entender porque eu, entre tantas que o conheciam, desde muitos anos, e que
teriam melhor condição de contar a sua história institucional. Hoje penso que o
professor diretor tinha a percepção de que eu queria um projeto coletivo, muito próximo
ao que MV sempre insistiu em construir, e me concedeu a honraria. Registro aqui,
então, a minha gratidão por essa oportunidade.

Nos mais ou menos oito anos em que trabalhei com MV, dividimos sala, demos aula
juntos, participamos do LEV. Então, ele sofreu um acidente de moto. Ele era
motoqueiro, além de poeta, para quem ainda não sabe. Foi terrível acompanhar aquele
processo, a indisciplina do MV com as exigências do seu estado físico nos preocupava,
mas ele superou tudo e voltou. Como sabemos, esses momentos de dificuldade geram
coisas impressionantes. O episódio fez com que MV, que já era muito querido por mim,
ficasse ainda mais próximo de outras pessoas que eu amava. Conheci sua família. Foi
reconfortante saber mais diretamente que havia solidariedade com o problema que o
MV enfrentou com o acidente. Ele era, sim, um homem respeitado e amado fora e
dentro da UFBA, pelas militantes, pelas estudantes, pelas colegas, pela família, por tudo
o que realizava, pela generosidade com que lutava pelos ideais coletivos. Em meio a
esse desafio de se recuperar do acidente, estava sua preocupação em manter a
supervisão das estagiárias e o cuidado dos usuários acompanhados. Houve muita
solidariedade por parte das colegas. Denise Coutinho, nossa recém-colega no
IPS/UFBA e amiga, o substituiu no Estágio Supervisionado em Saúde Mental. Um
tempo após a experiência, ela me disse: “Moli, tive a oportunidade de realmente
conhecer o trabalho incrível de Marcus Vinícius, foi uma dádiva generosa dele e eu
pude dizer isso, quando nos reunimos na casa dele para avaliar o semestre e dar as notas
de estágio”.

Na sexta-feira de carnaval do ano de 2016, em Salvador, recebi um telefonema de um
outro grande amigo seu, Marcelo Magalhães, me avisando do assassinato do MV.
Desejei que fosse outro acidente, não acreditei que ele poderia estar morto, que ele fora
brutamente assassinado. Fazia um ano que não o via, porque eu estava em estágio
sênior, mas a distância nunca foi um problema para nossa amizade. Em janeiro, falamos
pelo telefone e ele me disse rindo, “você já pode me visitar, Molico, a casa esta linda, há
peixe para você, a gente pesca da cozinha, está tudo limpo, você não terá alergia”.
Selou: “eu e Marta te esperamos, então”. Descreveu-me o lugar e propôs momentos de
leveza. Combinamos de nos encontrar depois do carnaval, porque ir à ilha de Itaparica é

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muito complexo nesse período. MV estava contente, com a mesma energia de sempre,
queria compartilhar comigo suas novas conquistas, o espaço do cuidado comunitário e
de formação que estava construindo no seu sítio. No mesmo dia, fomos acompanhar sua
família para “reconhecer o corpo”, levamos mais de quatro horas por terra. Duro
demais, intenso e angustiante. Esta é a última imagem que tenho do meu mestre, colega
e amigo. No entanto, nem essa violência será capaz de apagar as tantas outras que tenho
da sua existência. Não posso negar sua morte, porque o vi, ali parado, naquele espaço
frio, mas com gente que o amava muito, lhe aquecendo de alguma maneira metafísica.
Esse calor me faz lembrar de MV, falar dele e de sua obra, quando e onde posso,
principalmente no Curso de Psicologia (IPS/UFBA). No mesmo ano da sua morte, as
estudantes do IPS/UFBA já lhe fizeram uma sincera e justa homenagem nomeando o
espaço coletivo principal de luta estudantil de Diretório Acadêmico Marcus Vinicius de
Oliveira Silva. Sem duvidas, a melhor que a UFBA poderia gerar! Apesar da crueldade
que lhe tirou a vida, MV não estava sozinho e jamais estará. O memorial, Memorial
Marcus Matraga, criado pelo Instituto Silvia Lane, é mais um exemplo do tanto de gente
boa que reconhece a beleza e importância da sua existência.
Eu faço parte deste coletivo e agradeço a MV também por isso.

Salvador, 24 de janeiro de 2017, sexta-feira de carnaval.
Mônica Lima de Jesus
Molico