Carta prá família que não mandei. – Marcus, por Demetrius Oliveira

matraga biografias February 8, 2018

Carta prá família que não mandei.

Ontem foi dia de encontrar com Marcão! Numa prosa com meu irmão de alma e armas,
Fabrício Morais, chorei. Sempre penso no choro pela morte de alguém como um grilhão que
“prende as almas neste mundo”. Se amei, quero liberto quem fez a passagem. O espiritismo
nos ensina tantas coisas e, entre elas, que o choro também é nossa válvula de escape, nossa
forma de demonstrar amor. Parece paradoxal, sinto como que tendo que “racionalizar” meu
choro quando penso no meu irmão. Quando estou a lavar as batas que ele me deu e as tantas
que “herdei” no pacote que chegou pelos correios. Já não lhes servia. Estava mais “cheinho” e
me couberam como uma luva. Quando as vejo no armário, arrumadinhas ou quando as visto
choro dizendo a ele, “oh meu irmão, meu choro é só de saudade tá? Não é para te prender”.
Todos nós da família estamos a repassar os “filmes” da convivência com ele e temos
internalizado, cada qual de sua forma, com o seu “entendimento”, os momentos melhores
com o Taras Bulba.
Preciso dizer que as batas que ganhei se encontraram com a alimentação natural que aprendi
com ele aos onze, doze anos. Quis “ser igual a ele”, ele me ensinou. Dona Isis disse prá ele;
“agora que você inventou isso, conversa com ele, diga o que ele tem que comer”. E quando ia
com ela ao mercado central ajudar com o carrinho de compras, ela comprava carne de soja,
arroz integral e outras coisas para que eu pudesse atender às minhas necessidades. Lembro de
quando era muito pequeninho e não sei como fui parar em BH, devia ter uns 6 ou 7 anos, só
sei que estava com ele, na faculdade. Ele tinha um macacão, que era moda à época, e eu
segurando numa alça e ele dizendo para as moças: “este é meu filho”. Quando ainda
morávamos na Boa Vista, ele chegou com um disco da Joan Baez com um recadinho singelo:
“Demetrius, o mundo é um ovo. Para nascer é preciso destruir um mundo. Não se preocupe,
um dia você vai entender, tá? Continue sensível por essas bandas”. Às vezes, me olho no
espelho e acho que somos parecidos fisicamente sim, mas não na grandeza. Ele foi e será
sempre daqueles de primeira grandeza.
Me vem as lembranças do apartamento à rua Tupis, quando ia à noite ao banheiro, de ver ele
dormindo no sofá com pés sujos e as precatas de couro no chão. Surradas de andar, de
“agitar” e de fugir do DOPS. E, pela manhã, ao acordar para ir para aula, encontrar apenas
vestígios de sua passagem. Era preciso acordar cedo, de madrugada prá articular a luta e
negacear os meganhas. Assisti aos anos finais da ditadura militar e a sua militância política, e
aí, as batas se encontraram com tudo isso. E eu me encontro com ele, em mim. Ele me ensinou
qual o lado da vida e de quem me posicionar. Ele me ensinou a gostar de cachoeiras. Era um
exímio “caçador de cachoeiras”. Descobriu uma no bairro JK e levou a família quase toda lá. De
certo, já lhe era conhecida dos tempos de menino em bandos e bicicletas. Em Santa Luzia
também me levou em uma. Cresci apaixonado por cachoeiras e até hoje, caço umas por aí.
Quando penso nele, e em algumas vezes que nós tivemos algumas brigas e as coisas que ele
me dizia, fortes, pesadas, até depois de estar mais velho, compreendo a sua “forma de ajudar”
que não era presunção e sim problematização. Tá, ele era presunçoso também, vai. Ele jogava
questões que nos punham a pensar, a refletir. Ele era mestre em me deixar com “pulgas atrás
da orelha”. De todas essas lembranças desse modus operandi que carrego comigo, tem uma
em especial e que em algumas conversas com meus filhos já lhes contei. Foi quando ele me
questionou o porquê de eu tentar ser pai de meus filhos sendo que passava tanto tempo longe
deles. Disse que eles iriam lembrar das férias como períodos muito duros comigo e que era
melhor eu “deixar os meninos mais soltos” (fazer o que quiser, comer o que quiser). Foi aí que
eu, depois de refletir, decidi e falei pro Luan, meu mais velho, uma vez, “serei seu pai até em
um encontro no aeroporto, numa conexão em que por acaso você for lá me ver”. Entendi mais
do que nunca a minha “luta pelo direito de ser pai” e que isso implicava em exercitar
(tentativas e erros e acertos) o meu amor.
No meu encontro com ele ontem, chorei, chorei pensando no seu “acordar do outro lado”.
Imaginando o susto e a perplexidade. Tanto amor e puxões de orelhas a dar, “empurrando” a
turma prá fazer as tantas coisas que ainda a sua seara tinha prá realizar. Tanta capacidade
produtivo-intelectual, a mil por hora, tantas coisas a fazer, até criar galinhas. Tanto amor prá
dar “do seu jeito”. Me veio à mente as imagens dos manicômios, a imagem da prática mais
sórdida que o ser des-humano pôde criar de banir seus pares “desajustados” (e ainda ganhar
dinheiro com isso) e “enxerguei melhor a expressão do amor dele. Só assim, me veio a imagem
dele cercado por espíritos de Luz desde o primeiro momento do desencarne a blindá-lo, a
protegê-lo. “este nós tivemos que buscar logo”. Ele não teve nem tempo de “curtir a sua
perplexidade”. Era preciso levá-lo logo para “sentir” sim, mas lá, no Plano da Luz.
Quando digo que as batas se encontraram com tudo isso, digo porque, mais do que nunca, sei
que nos reconciliamos nos últimos anos, no calor das lutas pelos Direitos Humanos, por
Humanidade, tínhamos o mesmo inimigo, o pai de toda a barbárie. Eu aprendendo, via
Facebook, sobre as suas frentes de lutas. Ele, as minhas. Foram vários momentos em que elas
“eram as mesmas”. Hoje, mais do que nunca, sei o que carrego de “legado” dele, sei o tanto
que ele foi e continuará sempre sendo importante na minha vida. E sei que todos vocês, meus
irmãos e irmãs, Pai e Mãe, estão vivendo isso, cada qual a sua maneira e eu aqui de longe, lhes
mando meu afeto, meu carinho, abraços apertados de conforto e uma certeza do privilégio
que tivemos e sempre teremos de ter podido conviver com essa figuraça que era o Marcus.