Aprendemos que formação tem a ver com autonomia, compromisso, dedicação, tem a ver com disponibilidade para ser presente na presença. – Marcus, por Luane Santos

matraga biografias February 8, 2018

Falar de Marcus Vinicius é fácil e ao mesmo tempo difícil por muitos motivos. Um primeiro desafio é escolher a partir de onde falar, uma vez que sua vida rica e cheia de expressões o colocou em muitas posições significativas na psicologia, na sociedade e nas nossas vidas. Psicólogo, professor, pesquisador, gestor do Sistema Conselhos de Psicologia, defensor incansável dos direitos humanos, militante de muitas causas no Brasil e na América Latina, criador de muitos casos, amigo… Um grande articulador de ideias e ações. Aos poucos vamos percebendo que tal escolha é em parte desnecessária, por que uma das suas muitas qualidades era a capacidade de integração desses diferentes papéis e a coerência no percurso. Seu caminho expressou a indissociabilidade e o diálogo entre campos repletos de contradição, tais como a academia e a militância, momentos em que ele habilmente convergia divergências e quando necessário divergia das convergências.

Lembro o dia em que conheci Marcus Vinicius! Estava no sexto semestre do curso de psicologia da Universidade Federal da Bahia e animada para começar a disciplina “Psicologia da Saúde”. O professor tinha fama extensa e nessa época a apreensão precedia a admiração. Ele começava seu curso com “Gaia Ciência” de Nietzsche, a sala em círculo, enquanto andava de um lado pro outro a nos inspirar com seu pensamento rápido, suas conexões precisas, parecia que já tinha lido todos os livros do mundo! Havia, sobretudo, paixão! Um professor exigente, às vezes incompreendido, mas sempre reconhecido. Era frequentemente paraninfo, assim como o foi na solenidade da nossa formatura, uma turma pequena e potente com estudantes profundamente afetadas por sua presença em nossa formação.

Apresentava-se para nós, o que ele já representava para muitos: o esforço de produzir cotidianamente uma psicologia crítica, inquieta, comprometida socialmente, que se importa com todos e todas, não apenas com alguns, uma psicologia que suspeita, mas ao mesmo tempo, vê-se capaz de contribuir para a transformação das condições de vida tão desiguais, produtoras de sofrimento e injustiça social. E com ele densos aprendizados teóricos no campo da psicologia iam sendo tecidos com o convite à indignação, a transpor o véu espesso da indiferença, a manter o esforço crítico, e por vezes até mesmo sofrido, do questionamento das certezas.
Foi idealizador do PIC (Programa de Intensificação de Cuidados a Pacientes Psicóticos), um campo de extensão/estágio interdisciplinar pautado na reforma psiquiátrica antimanicomial, no qual desenvolvíamos atenção domiciliar, acompanhamento terapêutico, espaços de convivência e sociabilidade, apoio aos familiares e suporte às necessidades individuais. Como supervisor, Marcus ensinava e aprendia sobre vínculo, cuidado, olho no olho e sabia suportar a angústia de nos provocar a sair da zona de conforto, sem isso representar desamparo. Em cada encontro nos convidava a ultrapassar os muros da universidade e do hospital psiquiátrico, construindo um experimento pedagógico inovador que desdobrou resultados no campo da formação e da assistência com expressiva melhora na qualidade de vida dos pacientes acompanhados.

Para Marcus a produção de conhecimento estava intimamente conectada com a vida concreta. E assim, do vínculo vivido com os usuários nos estágios em saúde mental, passamos ao estudo do vínculo, da subjetividade, das tecnologias leves na iniciação científica. Nascia o Laboratório de Estudos Vinculares em Saúde Mental da UFBA com uma compreensão radical sobre a relação dialética entre a subjetividade e o campo social. A organização do trabalho na pesquisa revelava em ato a riqueza da sua posição intelectual disponível para construir coletivamente. E por muitas vezes reunimo-nos em círculo para ouvir a contribuição de cada integrante com igual respeito.

Voltamos ao PIC, dessa vez para pensá-lo como projeto, como dispositivo, como possibilidade de intervenção a partir dos princípios da luta antimanicomial, e registrar esse modo de trabalhar, esse jeito de fazer psicologia. Ao escrever o relato de experiência a respeito do PIC com Fernanda Rebouças e depois o ensaio teórico sobre a dimensão subjetiva da desigualdade social com Alessivânia Mota,  aprendemos com Marcus o sentido de uma publicação: tornar público um conhecimento produzido, mas principalmente o conhecimento refletido e vivido!

Como orientador no mestrado, Marcus sempre nos convocou ao lugar de pesquisadoras. Fazia insistentemente o convite para que não tivéssemos medo de caminhar pela exploração intelectual da temática o mais amplamente possível para só então produzir uma demarcação metodológica. Nas suas palavras (1) : “muitas vezes temos receio de que abrindo a compreensão isso vá produzir alguma ordem de dispersão e confusão, mas o caminho de ampliar para depois recortar segue sendo o caminho mais adequado, do que recortar, recortar, recortar, para depois como ampliar o que foi recortado, diminuído, segmentado, reduzido? Não há como produzir uma discursividade que possa explorar a complexidade dos fenômenos e desenvolver… É bom não ter receios, é bom suportar os receios”. E assim o processo foi se construindo bem mais expressivo do que qualquer resultado.

Marcus sabia transitar pelas águas turbulentas do afeto e por meio de uma “pedagogia da confrontação”, deixou marcas profundas naqueles que afetou e pelos quais também era afetado. Aprendemos com ele sobre trabalho coletivo, que é possível ser consistente e profundo teoricamente e ao mesmo tempo manter a liberdade do pensamento. Aprendemos que formação tem  a ver com autonomia, compromisso, dedicação, tem a ver com disponibilidade para ser presente na presença; que é importante formar não somente em torno de conteúdos (que sem dúvidas são indispensáveis), mas pensar a formação como construção de uma atitude engajada na ciência, na profissão e na vida.

Marcus é um grande companheiro nessa jornada de tornar-me psicóloga, professora e pesquisadora. Hoje o desafio é grande: seguir com ele no referente das experiências vividas, uma semente, mas que é ao mesmo tempo o solo fundamental para qualquer vir-a-ser, florescer. Marcus vive na psicologia, na contribuição que deu para a construção de uma sociedade brasileira mais democrática, para o fortalecimento dos direitos humanos, vive em cada pessoa que marcou e por tudo isso não tenho dúvidas em afirmar, que também agora, Marcus Vinicius: presente! Difícil falar de alguém que por convicção falava por si mesmo. Então, nada melhor que seus versos para encerrar.
Antes eu me desculpava…
Queria ser um acadêmico “honesto e limpinho” daqueles da voz pausada e reflexiva como convém a todos os que estão com a vida ganha… Mas algo sempre me trai, o espírito militante fala mais alto e a sagrada indignação me toma e me possui quando o tema é justiça e direitos…
Cada um é para o que nasce! (Marcus Matraga)

1 Fala proferida por Marcus Vinicius no encerramento da minha defesa de mestrado. Gravado pela autora.

www.memorialmatraga.com.br/arquivos/Marcus_por_Luane_Santos.pdf

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